Diretriz da Sociedade Brasileira de Medicina Nuclear para confirmação de morte encefálica através da cintilografia de perfusão cerebral

Alinne Fernanda Verçosa1, Nelisa Helena Rocha2, Marcelo Tatit Sapienza3, Barbara Juarez Amorim4.1 - Médica Residente do Serviço de Medicina Nuclear da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas-SP, Brasil..2 - Professor Associado do Departamento de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Brasil..3 - Médica Preceptora da residência de Medicina Nuclear do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), Brasil..4 - Médica Nuclear do Serviço de Medicina Nuclear da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas-SP, Diretora Científica da SBMN, Brasil..

Introdução

Morte encefálica é definida como a cessação total e irreversível de todas as funções cerebrais, inclusive as do tronco cerebral relacionadas a circulação e respiração. O seu diagnóstico é primariamente clínico e é importante para permitir a doação de órgãos para transplantes. Os estudos complementares são úteis para confirmação da morte encefálica, entretanto, não substituem os testes clínicos e devem mostrar de forma inequívoca a ausência de atividade elétrica ou metabólica cerebral ou a ausência de perfusão sanguínea cerebral.

A resolução do CFM nº 1.480/97 estabelece quais são os exames complementares possíveis para constatação da morte encefálica: 1) Avaliação da atividade circulatória cerebral: angiografia, cintilografia radioisotópica, doppler transcraniano, monitorização da pressão intracraniana, tomografia computadorizada com xenônio, SPECT; 2) Avaliação da atividade elétrica: eletroencefalograma; 3) Avaliação da atividade metabólica: PET, extração cerebral de oxigênio.

Os exames da Medicina Nuclear empregados e abordados nesta diretriz são os relacionados à avaliação da atividade circulatória cerebral, a Cintilografia de Fluxo Sanguíneo Cerebral e a tomografia por emissão de fóton único (SPECT) de Perfusão Cerebral.

O SPECT de Perfusão Cerebral com radiofármacos específicos é preferível, pois é menos dependente da qualidade do bolus já que, além das imagens de fluxo sanguíneo, também avalia-se a captação do traçador no parênquima cerebral. Além disso, ele permite melhor visualização da perfusão das regiões posteriores encefálicas, o que não ocorre com a Cintilografia de Fluxo Sanguíneo Cerebral, usualmente realizada apenas na projeção anterior.

Nesta Diretriz não será abordada a avaliação metabólica por meio do estudo PET Cerebral com FDG-18F para confirmação da morte encefálica, pois não existem guidelines internacionais específicos para essa indicação e em nosso país a Cintilografia de Fluxo Sanguíneo Cerebral e o SPECT de Perfusão Cerebral são acessíveis e contemplados nas tabelas de SUS e da ANS para essa indicação.

Indicação

Confirmação de morte encefálica em adultos e em crianças a partir de 2 anos (vide resolução do CFM nº 1.480/97), após exame clínico neurológico indicando morte encefálica.

Informações pertinentes à realização do procedimento:

  • Verificar e anotar em anamnese a ocorrência de trauma crânio-encefálico (TCE), infecção ou isquemia no sistema nervoso central (SNC), que podem prejudicar a interpretação das imagens;
  • Checar o exame clínico neurológico e qualquer outro teste que corrobore a hipótese de morte encefálica;
  • Certificar-se de que o paciente esteja bem posicionado, com a cabeça simetricamente alinhada no eixo longitudinal, assegurando que o fluxo sanguíneo seja analisado igualmente em ambos os hemisférios cerebrais;
  • Verificar se o paciente está em uso de barbitúricos, que podem diminuir o fluxo sanguíneo cerebral se utilizados em altas doses.

Preparo do paciente

  • O paciente com suspeita de morte encefálica apresenta-se em vigência de drogas hemodinâmicas e em ventilação mecânica. Sempre se deve checar a viabilidade de transporte desse paciente até o serviço de Medicina Nuclear pesando-se riscos e benefícios.
  • É recomendável que o paciente esteja acompanhado no serviço de Medicina Nuclear pelo médico clínico e enfermeiro especializado. Além disso, a sala da câmara de cintilação deve estar preparada para recebê-lo com acesso a oxigênio e espaço físico para acomodação dos equipamentos como bomba de infusão, tubo de oxigênio etc.
  • O paciente deve estar com acesso a uma veia periférica de bom calibre para o estudo de fluxo sanguíneo cerebral.
  • O uso do torniquete na cabeça (acima das sobrancelhas, orelhas e proeminência occipital) ajuda a reduzir o fluxo sanguíneo do escalpe que poderia eventualmente ser confundido com fluxo sanguíneo cerebral. Seu uso não é obrigatório e não deve ser utilizado em casos de TCE por risco de agravar a lesão, mas é recomendável que se use principalmente na Cintilografia de Fluxo Sanguíneo Cerebral em que não se administre traçadores específicos para o tecido cerebral.

Protocolo técnico

Radiofármacos

É recomendado que seja dado preferência ao SPECT de Perfusão Cerebral com agentes cerebrais específicos, sempre que possível:

  • Cintilografia de Fluxo Sanguíneo Cerebral: utilizam-se radiofármacos usados nos estudos de fluxo, como o pertecnetato-99mTc e DTPA-99mTc. O pertecnetato-99mTc é fisiologicamente secretado pelo plexo coroide, o que deve ser lembrado no momento da interpretação.
  • SPECT de Perfusão Cerebral: radiofármacos específicos para o tecido cerebral como o ECD-99mTc e HMPAO-99mTc, que são lipofílicos e distribuem-se no parênquima encefálico proporcionalmente ao fluxo sanguíneo cerebral regional.

Marcação e controle de qualidade

Deve ser sempre realizado, de acordo com as normas do fabricante. Quando empregados radiofármacos específicos para o tecido cerebral, a eficiência de marcação deve ser maior que 90% e recomenda-se a utilização do radiofármaco em intervalo máximo de 30 minutos após sua marcação e controle. A interpretação do estudo pode ser comprometida com a baixa marcação, uma vez que neste caso pode não haver captação pelo cérebro no estudo de perfusão cerebral mesmo que não apresente morte encefálica, gerando estudo falso-positivo. Nestas situações, as imagens de fluxo sanguíneo auxiliam na interpretação.

Atividade do adulto

740 a 1110 MBq (20 a 30 mCi) tanto para os traçadores de fluxo sanguíneo como para os específicos para tecido cerebral.

Atividade pediátrica

11,1 MBq/kg (0,3 mCi/kg), mínimo de 185 MBq (5 mCi).

Administração

Administrado em veia periférica de bom calibre, em bolus.

Aquisição

  • Posicionamento do paciente (ambos os estudos): decúbito dorsal horizontal, com a cabeça alinhada (não lateralizada).
  • Quando possível, garrotear a cabeça acima dos olhos, conforme mencionado em Preparo do Paciente.
  • Energia: janela de 15% em 140 keV
  1. Cintilografia de Fluxo Sanguíneo Cerebral.

    • Colimador: Low Energy All Purpose (LEAP).
    • Fluxo sanguíneo na projeção anterior (se câmara de 2 cabeças realizar fluxo nas projeções anterior e posterior: imagens sequenciais a cada 2 segundos por pelo menos 1 minuto).
    • Matriz 128 x 128.
    • Zoom: variável; sugestão 1,8x.
    • Imagens planas nas projeções anterior, posterior e laterais de cabeça após 5 min.
    • Matriz: 256 x 256.
    • Contagens: 500.000 contagens.
  2. SPECT de Perfusão Cerebral.

    • Colimador: baixa energia com alta resolução (LEHR).
    • Fazer inicialmente uma fase de fluxo sanguíneo, que poderá ajudar na interpretação, ídem ao descrito na Cintilografia de Fluxo Sanguíneo Cerebral.
    • A partir de 20 minutos da injeção, realizar imagens estáticas anterior, posterior e laterais, e SPECT (As imagens de SPECT são as ideais por proporcionar melhor visualização de todo o cérebro. Entretanto, ela pode não ser factível devido a todos os equipamentos ligados ao paciente. Caso não possa ser realizada, fazer imagens planas nas projeções anterior, posterior e pelo menos uma lateral para visualizar a fossa posterior).
    • Imagens planas: projeções anterior, posterior e laterais de cabeça.
    • Matriz: 256 x 256.
    • Contagens: 500.000 contagens.
    • Imagens tomográficas (SPECT).
    • Detectores: múltiplos detectores são preferíveis, mas também é possível realizar boas imagens com apenas um detector.
    • Matriz: 128 x 128.
    • Uma imagem a cada 6 graus, 30 segundos por imagem.

Análise e Interpretação

A Cintilografia de Fluxo Sanguíneo Cerebral e o SPECT de Perfusão Cerebral podem ser usados para confirmar a morte encefálica e não diagnosticar. Eles são aceitos pelo Conselho Federal de Medicina como um dos exames complementares para constatação da morte encefálica.

Dar preferência à visualização das imagens no computador a imagens por fotos.

Cintilografia de Fluxo Sanguíneo Cerebral

  • Analisar as imagens de fluxo sanguíneo preferencialmente pela projeção anterior. A imagem deve ser realizada com a cabeça alinhada (não lateralizada) bem posicionada para permitir uma comparação entre os lados direito e esquerdo. O fluxo deve ser observado do nível das carótidas até o vértex do crânio. Na posição anterior deve-se procurar pelo chamado “tridente”: as artérias cerebrais médias vão da linha média até a porção lateral do crânio e as artérias cerebrais anteriores aparecem na linha média como um único vaso.
  • Na morte encefálica o fluxo sanguíneo intracraniano está completamente ausente. Pode haver o chamado hot nose: aumento focal da atividade na região da nasofaringe devido a um aumento da pressão intracraniana levando a um shunt sanguíneo das carótidas internas para o sistema das carótidas externas.
  • Muito cuidado é necessário para diferenciar circulação da artéria carótida externa no couro cabeludo (scalp) da circulação da carótida interna no cérebro. O uso de garrote supraorbitário, conforme mencionado no preparo e aquisição, pode facilitar a análise impedindo a circulação da artéria carótida externa no couro cabeludo.
  • Em indivíduos normais, o seio sagital superior é observado na fase venosa do fluxo sanguíneo. Nos pacientes com morte encefálica uma discreta atividade pode ser observada nesta região, vinda do couro cabeludo.
  • Em pacientes com traumatismo craniano, pode haver fluxo aumentado para as lesões no couro cabeludo e calota craniana, podendo ser confundido com fluxo cerebral.
  • O pertecnetato-99mTc é fisiologicamente secretado pelo plexo coroide, devendo ser lembrado no momento da interpretação.

SPECT de Perfusão Cerebral com radiofármacos específicos

  • Imagens planas tardias ou SPECT. Sempre antes de analisar as imagens de SPECT, deve-se olhar a aquisição em cine para confirmar que todas as projeções foram adquiridas, que não houve movimentação significativa, checar a relação alvo-atividade de fundo. Deve-se dar preferência para a escala de cinza ao invés das coloridas, devido a maior sensibilidade da escala de cinza em baixa atividade.
  • No exame positivo para morte encefálica, ocorre ausência completa de captação cerebral do radiofármaco. Deve-se verificar se não há captação em todo o cérebro incluindo os hemisférios cerebrais bilateralmente, os hemisférios cerebelares e o tronco cerebral. Se forem adquiridas apenas imagens planas deve-se realizar no mínimo as projeções anterior e posterior e pelo menos uma projeção lateral para a análise da fossa posterior.
  • O sinal do hot nose também pode estar presente neste estudo nas imagens de fluxo sanguíneo, imagens estáticas e imagens tomográficas SPECT (fig. 1).
  • Importante checar o controle de qualidade do radiofármaco, pois a baixa eficiência de marcação pode reduzir a captação cerebral.

Figura 1
Figura 1 Cintilografia de perfusão cerebral com ECD-99mTc demonstrando fluxo sanguíneo cerebral completamente ausente. Sinal do hot nose: aumento focal da atividade na região da nasofaringe (aumento da pressão intracraniana levando a shunt das carótidas internas para o sistema das carótidas externas).

Recomendações para o laudo

Descrever de forma clara os possíveis padrões de:

  • Ausência completa de fluxo sanguíneo cerebral e cerebelar (fig. 2).
  • Fluxo sanguíneo cerebral presente, apesar de anormal; nesse caso, descrever áreas de presença e ausência do fluxo (fig. 3).
  • Fluxo sanguíneo cerebral normal (fig. 4).

Se o estudo for equívoco, pode ser repetido em intervalo de 24 horas ou optado por outro método confirmatório. 

Figura 2
Figura 2 Cintilografia de perfusão cerebral com ECD-99mTc. Imagens SPECT nas projeções sagital, axial e coronal, demonstrando ausência completa de concentração do radiotraçador nos hemisférios cerebrais e cerebelares.

Figura 3
Figura 3 Cintilografia de perfusão cerebral com ECD-99mTc. Esquerda: Imagem de fluxo sanguíneo demonstrando presença de fluxo para o hemisfério cerebral esquerdo e ausência para o contralateral. Direita: SPECT nas projeções axial, sagital e coronal, demonstrando concentração do radiotraçador em parte do hemisfério cerebral esquerdo e ausência no hemisfério direito (Imagens gentilmente cedidas pela Dra Carla Ono).

Figura 4
Figura 4 Cintilografia de perfusão cerebral com ECD-99mTc demonstrando presença de fluxo sanguíneo em ambos os hemisférios cerebrais.

Bibliografia

  1. Donohoe KJ, Agrawal G, Frey KA et al. SNM Practice Guideline for Brain Death Scintigraphy 2.0. J Nucl Med Technol 2012;40:198-203.
  2. Diagnostic Imaging: Nuclear Medicine. Bennett, P. & Oza, D. (ed.). In: Section 2: Central Nervous System: Vascular/Brain Death. Elsevier, 1ª ed., 2016.
  3. Zuckier LS. Radionuclide evaluation of brain death in the post-McMath Era. J Nucl Med 2016;57:1560-8.
  4. Resolução CFM nº 1.480/97. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/1997/1480_1997.htm. Acesso em: 17 de abril de 2017.
  5. Kramer AH. Ancillary testing in brain death. Semin Neurol 2015;35:125-38.